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MONSTROS E DESEJOS – Caixa Cultural SP

Cavaliere

Na CAIXA CULTURAL SÃO PAULO da Praça da Sé, quatro exposições estão abertas até o início de dezembro – duas delas, e duas no início de novembro. Recomendo vivamente esse encontro. Entrando sem grandes expectativas, várias questões logo chamaram minha atenção, e gostaria de dividir com todos uma visão do todo e em cada uma delas. Olhando de longe sistematicamente, há um enfoque sobre Questões de Gênero, Xenofobias – o feio, o monstro, o perigoso, a ameaça da mulher – monstra quando não se faz santa …. sem qualquer premeditação por parte de seus autores, o que torna a observação, ainda mais acintosa, porque tomada por natural.

Assim foi na exposição da chamada SOCIEDADE CAVALIERI. Uma sociedade secreta surgida depois da morte de Cavalieri (Giovanni Battista de’ Cavalieri), um incrível gravurista do século XVI, cujo olhar e objetos de produção, visavam o desassossego sobre formas grotescas que povoariam pesadelos do período, assombrados por fantasmas medievais. Seus seguidores brotam no século XIX sob a vigência de nova mentalidade trazida por um cientificismo que se impunha, matando horrores das fábulas tenebrosas e grotescas. Nos estertores da teocracia medieval, formas inumanas tomam de assalto o vazio deixado pela expectativa nas Grandes Navegações.

Criatura maternal do Egito - Cavaliere - gravura a buril de 1585

Criatura maternal do Egito – Cavaliere – gravura a buril de 1585

Do imaginário renascentista, povoado de histórias fantásticas trazidas por navegadores, viajantes e aventureiros que cruzavam imensas distâncias, traziam relatos medonhos de criaturas misteriosas e impensáveis, recriadas pelo medo, a ignorância e a extrema curiosidade pelo misterioso. Também pelas viagens a pontos extremos da Terra, mostras, feiras e circos se compraziam em expor pobres corpos deformados como se dignos de olhares escandalosos, como os homens sem pernas e outras injúrias da natureza, em troca de dinheiro, nojo e piedade religiosa.

Cavaliere - gravura de 1585

Retrato do rei Picino de Roma – por Cavaliere – gravura de 1585

Nessa trilha vemos a glória grotesca em Aliprando Caprioli, seguidor direto de Cavalière, sob a influência poderosa de David de Michelângelo, que delata a afronta à Ética com um pesadelo de cinco cabeças e quatro patas, sendo cada cabeça uma alegoria da deformidade do espírito humano: A Avareza, a Fraude, a Desordem, o Delírio e a Estupidez (o porco). Em cada mão o monstro carrega a Inveja e a Guerra, e sob os pés esmaga a Inocência, a Paz e a Justiça. Alegoria monstruosa que nos persegue aos dias atuais…..

Aliprando Caprioli - 1595

Monstro dos males humanos – Aliprando Caprioli – 1595

Entre os horrores da imaginação e as surpresas injustas da genética, um grande anedotário foi se criando, reverberando nas obras de Jorge Luis Borges (em seu ‘Livro dos Seres Imaginários’), em Júlio Cortázar com seu ‘Bestiário’, nas riquezas criativas de Rembrandt e Goya entre outros ‘associados’ à escola fantástica de Cavaliére.

A exposição teria tido a curadoria de Pierre Menard – personagem de Borges, que afirmou que as obras se construiriam a si mesmas como a determinação do Destino, desde que se produzisse em si mesmo uma espécie de ‘captador’ para as grandes obras como a de Cervantes – nada menos que Dom Quixote. E esse grande pensador delirante, estaria responsável pela escolha e disposição dos Gravuristas que escolheram  repensar em forma de monstros, as ideias antes vistas como  gloriosas. Assim, As Três Graças, são trazidas à cena como uma só persona em três cabeças, saindo das águas, vitoriosas e sorridentes, poderosas na reunião de seus três poderes alegóricos: Dar, Receber e Retribuir, mas desta vez, de forma assustadora.

As três graças

As três graças – xilogravura

Mas seja mítico, alegórico, metafórico, crítico ou cínico, a qualidade das gravuras, em metal, buril ou xilogravuras, é memorável.

Outra exposição cujo foco é também monstruoso, fica por conta de DARCÍLIO LIMA sob o título de UM UNIVERSO FANTÁSTICO. De estética obviamente contracultural, Darcílio Lima (1944-1991), oriundo do Ceará e interno da ‘Casa das Palmeiras’ no Rio de Janeiro, para casos psiquiátricos mais graves, apresenta – com enorme talento e impacto, suas monstras eróticas antropófagas, que denotam força desmesurada como se fossem Titãs da fase pré-Olimpo.

Demônia - 1968

Demônia – 1968

Eros e Tanatos em absurdos choques de terror e atração unem forças de esmagar mortais indefesos. Sob o manto ideológico das igrejas fundamentalistas (cristãs, muçulmanas e judaicas), demônias poderosas assumem formas perfeitas de dominação, excitação e danação. E como fonte de sua pobre e frágil sexualidade, como já apontado pela Bíblia, via São Paulo e outros santos inquestionáveis, localizam nas mulheres, holocaustos de suas sanidades e seguranças sagradas. Sob tais demônias, traçadas com muitos detalhes e assustador domínio de tempo e olhar, os anos sessenta e setenta saltam aos olhos numa ponte tomada pela loucura, horror e tesão.

Darcílio Lima

Demônia – 1971

No contra-fluxo das religiões misóginas, que constroem monstros com o intuito de apavorar e dominar, a grande, antiga e generosa Candomblé, também figura nesse panorama de horrores, dando a conhecer o desconhecido  monstro como libertador, e a força feminina como magnânima e protetora. Seus Orixás, em igual poder transformador, comandam em auxílio às forças da natureza que compõe o todo que aludimos vida.  Pela paleta de TERCILIANO JR, comemorando 50 anos de trabalhos memoráveis, a exposição pontua a MATRIZ AFRICANA EM ARTE que se quedou brasileira, comemorando sua trajetória.

Orixás

Orixás

Orixás

Orixás

E por fim, fora dos sonhos, alegorias, desejos e religiões a grande e monstruosa realidade dos renegados – cidadãos punidos em seus destinos aleatórios como uma maldição ilógica recheada de violência abjeta e cruel.

André Liohn

Famélicos – André Liohn

Sob as lentes de  ANDRÉ LIOHN, fotojornalista premiadíssimo, acostumado às imagens de conflitos armados no exterior, encontra nas periferias  brasileiras horrores similares e análogos. Sob o título de REVOGO, a exposição deflagra um silêncio constrangido e opressivo quando  grande parte do povo brasileiro é visto e flagrado em toda a glória de sua indigência.

 

 

Como a escória mantida por políticas públicas, seja da direita como da esquerda, um mundo monstruoso é exposto em extrema dor e crueza, arrastando corpos, presuntos pela lama, cachorros, gatos e crianças famélicas, desmembrados do processo civilizatório que desampara e desajusta travestis, prostitutas jogadas em ringues de bárbaros histéricos, alucinados pela carência, o oco da falta, a revogação do direito de humanidade, num Revogo abjeto e politicamente mantido. O monstro no real.

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Revogo

Como a escória mantida por políticas públicas, seja da direita como da esquerda, um mundo monstruoso é exposto em extrema dor e crueza, arrastando corpos, presuntos pela lama, cachorros, gatos e crianças famélicas, desmembrados do processo civilizatório que desampara e desajusta travestis, prostitutas jogadas em ringues de bárbaros histéricos, alucinados pela carência, o oco da falta, a revogação do direito de humanidade, num Revogo abjeto e politicamente mantido. O monstro no real.

Outro ringue

Outro ringue

Neste mês, o monstruoso atravessa séculos, delírios e os horrores da injustiça humana contemporânea, num grande painel  de nossos pesadelos e desacertos….. discorrendo pelas artes que ecoam referências inconsciente que percorrem nossos silêncios, entre a Civilização e a Barbárie.

 

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