LOIS WEBER: A PRINCIPAL DIRETORA E ROTEIRISTA DO INÍCIO DE HOLLYWOOD
Por Claudia Aguiyrre
Esse é o segundo capítulo da Série Pioneiras do Cinema que vai resgatar a história de mulheres que inauguraram a participação feminina nesta arte.
“Um real diretor deveria ser absoluto”, disse Lois Weber.
A pesquisa que dá origem a estes artigos parte da constatação de que a história do cinema estudada até os dias atuais – bem como o desenvolvimento de sua linguagem – foi e ainda é majoritariamente escrita por homens. Ao reconhecer este como um contexto normativo, excludente e reducionista, parece evidente a necessidade de estimular e promover a circulação de informações a respeito da significativa, senão vital, participação feminina no que entendemos por cinema e suas derivações abarcadas hoje pela criação audiovisual.
Reivindicar a inclusão dos feitos de inúmeras mulheres que deixaram em suas obras legados técnicos e narrativos, bem como suas contribuições estéticas, não é apenas uma questão de justiça histórica, mas é também uma oportunidade de entender a trajetória desta arte numa amplitude inédita. Na mesma perspectiva, inúmeras realizadoras e pesquisadoras estão neste momento, mundo afora, tratando de recuperar estas heranças fílmicas, técnicas e teóricas, que uma vez restituídas aos devidos lugares, mudarão significativamente os livros relacionados com a história e a linguagem do cinema, pois sim: as mulheres foram as reais pioneiras na maioria das áreas vinculadas e desenvolvidas na arte cinematográfica.
Na senda de Alice Guy-Blaché, que começa a ser considerada a legítima mãe do cinema à luz de irrefutáveis constatações históricas, há uma lista de mulheres talentosas e visionárias que dedicaram boa parte de suas vidas à criação cinematográfica, em um período chamado de primórdios do cinema, bem como nas fases seguintes de seu desenvolvimento, a era dos filmes mudos e a posterior incorporação do som às realizações, época que marca o declínio paulatino da participação feminina na sétima arte. Uma das personagens mais significativas neste sentido foi a criadora Lois Weber, que acreditava no poder narrativo e dramático que a nova tecnologia do cinematógrafo aportava, em épocas em que muitos continuavam cautelosos a respeito do impacto cultural daquilo que se transformaria no cinema tal e qual o conhecemos.
Weber foi a principal diretora e roteirista do início de Hollywood, destacando-se como uma realizadora genuína e criativa. Com uma personalidade multifacetada Lois Weber também produziu, atuou e foi montadora de diversos filmes da época. Consta que também idealizou cenários e trabalhou com figurinos, além de escrever intertítulos e revelar negativos. Segundo o IMDb (Internet Movie Database, base de dados online sobre áreas artísticas) a realizadora teria participado em mais de 200 filmes, dos quais teria dirigido 135 e roteirizado 114.
Outras fontes chegam a citar que teriam sido entre duzentas e quatrocentas as produções em que ela desempenhou alguma função, mas infelizmente a maioria destas obras foi perdida, restando apenas perto de 20 filmes que, no entanto, são suficientes para atestar o pioneirismo e a sensibilidade desta que chegou a ser a realizadora mais bem paga do mercado americano, nas primeiras décadas do futuro império hollywoodiano.
Esta particularidade não se deve, no entanto, a benevolência do estúdio e sim a habilidade com que a diretora negociou contratos de distribuição de seus filmes com a então Universal Film Manufacturing Company, onde trabalhou por um período, antes de se estabelecer em sua própria empresa, a Lois Weber Productions, fato que a consagrou como a primeira americana a estar à frente de um estúdio cinematográfico. Ela também foi a primeira mulher eleita para a Associação de Diretores de Cinema, que posteriormente se tornaria o Sindicato dos Diretores da América (Directors Guild of America), espaço que ocupou por décadas sendo a única mulher a fazer parte até a inclusão da atriz, roteirista e diretora Ida Lupino.
Lois Weber é apenas uma das muitas realizadoras “esquecidas”, até bem pouco tempo, pela história oficial do cinema, na qual destacaram-se não só pela genialidade criativa, mas também pelas aptidões técnicas e administrativas e que, com espírito visionário, ajudaram a conceber a atual indústria do entretenimento.
AS QUESTÕES DE GÊNERO NO CINEMA
Nascida no então estado norte-americano da Pensilvânia a realizadora mudou-se para Nova Iorque aos 25 anos para tentar trabalhar como atriz de teatro. Era o ano de 1904 e segundo a historiadora e documentarista americana Cari Beauchamp, que aborda o pioneirismo feminino na indústria emergente da época em biografia dedicada a outra das precursoras do cinema, a roteirista Frances Marion (Without Lying Down: Frances Marion and the Power of Women in Hollywood), Lois Weber “… estava convencida de que a profissão teatral precisava de uma missionária”, ideia que fazia eco às suas preocupações com questões sociais e que a levaram a ser missionária de rua como seu pai, cantando hinos evangélicos nas esquinas. Beauchamp destaca ainda que Weber entendia que a melhor maneira de alcançar o público com suas pregações era tornar-se uma atriz “… então eu subi ao palco com um grande desejo de converter meu próximo”, teria dito a realizadora.
Em seus primeiros anos nova-iorquinos Weber dedicou-se então ao teatro e vinculou-se a uma trupe na qual conheceu Phillips Smalley, que viria a ser posteriormente seu marido. Inicia sua carreira cinematográfica por volta de 1907, ao lado de Smalley, desenvolvendo pequenas produções que assinavam como o coletivo “The Smalleys”, destinadas a diversos estúdios. Alguns anos mais tarde, em 1912, eles foram encarregados pela então Universal Film Manufacturing Company, recém chegada a Nova Iorque, para administrar a associada a Rex Motion Pictures, que se transformaria rapidamente num dos selos mais sofisticados daquele estúdio.
Dois anos mais tarde, em 1914, Weber dirige O Mercador de Veneza (The Merchant of Venice), o primeiro longa-metragem da história dirigido por uma mulher, filme que ainda está entre os títulos desaparecidos desta criadora. Para então a realizadora já contava com uma significativa inserção no meio cinematográfico, fato que ela comentou dizendo: “Eu cresci em uma indústria onde todos estavam tão ocupados aprendendo seu ramo particular do novo mercado que ninguém tinha tempo para perceber se uma mulher estava conseguindo conquistar espaço”. Naquele momento seu nome era rotineiramente mencionado ao lado de D.W. Griffith e Cecil B. DeMille como talentos cinematográficos.
No ano de 1915 Lois Weber assina sozinha a direção de seu emblemático roteiro Hipócritas (Hipocrytes), no qual aborda a hipocrisia social a partir de alegorias em torno do conceito da verdade. O filme é uma sofisticada criação na qual Weber utiliza pioneiramente o recurso de dupla exposição na montagem para representar a “Verdade Nua”, uma personagem feminina que aparece translúcida interagindo com as demais personagens sem ser vista por estas.
A Verdade estaria aparentemente nua, o que causou revolta em parte da plateia mais moralista e alguns conselhos de censura do governo americano, porém, o dado mais significativo não reside na suposta e ousada nudez da atriz (historiadores ainda discutem se ela usava ou não um collant nas cenas, podendo ser assim o primeiro nu frontal do cinema), e sim, na crítica social aguda que o filme propõe.
Numa das cenas de Hipócritas, num comício político, a mulher que representa a Verdade Nua segura um espelho de mão e um intertítulo aparece com os dizeres: “a verdade faz a política se olhar no espelho”. Este filme foi o primeiro a utilizar o recurso da sobreposição de imagens ao contrário do que se costuma divulgar atribuindo este feito ao filme sueco A Carruagem Fantasma (Körkarlen) de 1921, dirigido e estrelado por Victor Sjöström.
Como roteirista Weber ainda ousou levantar alguns temas ligados a causas femininas como a contracepção e a discutir em seus filmes questões como a opressão sofrida pelas mulheres da época, na ambivalência entre uma vida doméstica e uma vida mais autônoma, dentro de uma modernidade social que se instalava.
“Lois Weber soube documentar o surgimento de uma nova psicologia feminina, ao visualizar de modo complexo e contraditório a dificuldade de se fazer mulher na era do progresso (…) numa incipiente modernidade (…)”, escreve Núria Bou, professora e pesquisadora espanhola em artigo intitulado Lois Weber: o pensamento feminino em movimento, publicado em Comparative Cinema, revista científica especializada em estudos ligados a cinema e recepção.
Embora sua visão ainda fosse impregnada da concepção cristã de filha de uma devota família de classe média americana, a criadora realizou filmes que abordavam diretamente tensões sociais como a pena de morte em The People vs. John Doe (1916), o abuso de drogas em Hop, Devil’s Brew (1916), além da pobreza e a iniquidade salarial em Shoes (1916).
Em artigo publicado na revista americana de cinema Photoplay, lê-se que “Muitas vezes ela falava em usar imagens em movimento como meio de alcançar mudanças políticas, aspirando a produzir um trabalho ‘que terá uma influência para o bem na mente do público’”, conforme citado pela pesquisadora Shelley Stamp em artigo publicado no Projeto Mulheres Pioneiras em Cinema (Women Film Pioneers Project da Columbia University) que dedica-se a impulsionar a pesquisa histórica sobre as mulheres que trabalharam nos primórdios do cinema.
A realizadora também abordou temas relacionados a questões de gênero, mesmo que ainda sob um forte crivo da moral cristã. É o que se pode constatar no filme Onde estão meus filhos? (Where are my Children?), uma produção de pouco mais de uma hora de duração, cuja trama se desenvolve em torno do aborto e do controle da natalidade, a partir de diversas personagens femininas. A pesquisadora Núria Bou destaca que: “… a diretora constrói uma personagem feminina que, em princípio não tem vocação maternal”, o que por si só já era tremenda audácia em seu contexto social.
Esta realização de 1916, assinada em codireção com Phillips Smalley, é possivelmente uma de suas obras mais controversas aos olhos da atualidade, uma vez que retrata como pessoas tristes e pouco realizadas, mulheres que não procriaram. Mesmo assim, Lois Weber surpreende como roteirista ao fugir da resolução fácil de fazer com que a protagonista finalmente torne-se mãe e ao invés disso incorpora “um giro narrativo no qual o casal não pode mais planejar nada familiarmente: o marido descobre que a mulher escondeu-lhe um aborto e não consegue perdoá-la”, diz Bou em seu estudo sobre a subjetividade feminina na obra de Weber.
A realizadora defendia que o corpo feminino era mais do que apenas um objeto para o olhar masculino e iniciou assim uma jornada reflexiva sobre essa subjetividade feminina que acabou refletindo em suas criações.
O pesquisador e crítico irlandês Aubrey Malone, em seu livro Censurando Hollywood: Sexo e Violência no Cinema e no Piso da Sala de Corte (Censoring Hollywood: Sex and Violence in Film and on the Cutting Room Floor), publicado em 2011, e ainda sem tradução para o português, destaca que ao levantar certos temas em suas realizações e roteiros Lois Weber também tornou-se “uma das primeiras diretoras a chamar a atenção dos censores nos primeiros anos de Hollywood”.
A PRECURSORA DO GÊNERO DE SUSPENSE
Com o sugestivo título de Suspense, o curta-metragem de 1913 apresenta o que pode ser uma das primeiras sequências de ação cinematográfica, em uma incrível perseguição de automóveis na qual vemos uma cena dentro da cena, com a ajuda do espelho retrovisor de um dos carros. Esta façanha técnica pode parecer trivial em tempos de profusão de cinema de ação, mas é preciso entender o quão engenhoso foi este feito com os recursos técnicos daquele contexto histórico.
A inventividade de Lois Weber encontra neste pequeno filme espaço para uma valentia ainda maior: a diretora inventa o split screen, ou tela dividida, uma técnica cinematográfica que, como o nome indica, divide a tela em duas ou mais partes, sendo esta divisão de tela explícita e por isso quebrando a ilusão de realidade à semelhança da visão humana.
A ação aparece no filme em montagem paralela dividindo a tela em três triângulos, recurso que aumenta indiscutivelmente a tensão da cena. A pesquisadora Núria Bou destaca que: “Nesta pequena façanha de Suspense, podemos ver o prazer de experimentar a linguagem cinematográfica e notamos uma constante e meticulosa pesquisa de enquadramento e planejamento”. Sobre o uso deste recurso é equivocado o dado de que o pioneirismo seria do diretor russo Yakov Protazanov, no filme mudo The Queen of Spades, lançado em 1916, três anos depois do experimentalismo de Lois Weber.
Ainda a respeito das inovações e do experimentalismo de Weber nas telas de cinema, consta que foi uma das primeiras diretoras, assim como Alice Guy Blaché, a incorporar o som em suas produções. Neste sentido é bem possível que Lois Weber tenha se inspirado na diretora francesa com a qual trabalhou por algum tempo, logo em seus primeiros anos de inserção no incipiente mercado cinematográfico. Em suas memórias publicadas pelas descendentes Roberta e Simone Blaché, sob o título As Memórias de Alice Guy Blaché (The Memoirs of Alice Guy Blaché) lê-se que Lois Weber teria afirmado que devia à mentora e ao marido a sua estreia na indústria cinematográfica.
A INVISIBILIDADE DA PARTICIPAÇÃO FEMININA EM TEMPOS DE CINEMA INDUSTRIAL
Talvez uma das questões mais significativas dos resgates que veem sendo feitos seja percebermos que estas pioneiras foram relativamente reconhecidas em suas épocas e que paulatinamente este reconhecimento foi sendo apagado – em alguns casos suprimido mesmo –, e que o fenômeno de omitir a participação feminina na construção de um setor específico para a cinematografia, longe de ser exclusivo desta área artística, coincide com o momento em que a realização cinematográfica passa a ser uma atividade rentável e industrial.
Foi num contexto em que cinema não era levado a sério como negócio que as mulheres puderam prosperar como criadoras, chegando segundo alguns pesquisadores a serem responsáveis por metade das produções até meados da década de 20. A partir desta observação torna-se relativamente fácil relacionar outros valores das sociedades capitalistas e patriarcais implicados nestes “esquecimentos” históricos.
Lois Weber viveu as mudanças no cenário cinematográfico frente ao mercado e percebeu o crescente interesse masculino por esta atividade que vinha se firmando cada vez mais economicamente. Talvez por isso, escreveu em 1928, um artigo publicado em jornal da época, exigindo mais oportunidades para diretoras mulheres e denunciando que as mulheres que estavam entrando na indústria naquele momento a encontravam praticamente fechada: “Um homem começando não teria tantos obstáculos”, criticava a realizadora.
Foi somente a partir dos anos 70 que nomes como o de Lois Weber começam a ser trazidos à luz da história da cinematografia mundial e, embora haja aportes indiscutíveis de pesquisadores homens, constata-se que a temática das pioneiras do cinema é um interesse predominantemente feminino. São mulheres a resgatar, estudar e prestigiar a importante participação de outras mulheres na cinematografia mundial.
*Claudia Aguiyrre é cineasta, artista multimeios, educadora e pesquisadora, graduada em Comunicação Social – Habilitação Jornalismo e pós-graduada em Estudos Culturais, ambas pela UFSC. Trabalhou por 15 anos como docente em cursos de Cinema e Realização Audiovisual, Comunicação Social, nas habilitações de Jornalismo e Publicidade e Propaganda. Sua experiência mais extensa é como documentarista, dentre as realizações encontra-se o documentário mata… céu… e negros, que recebeu os prêmios Revelando os Brasis, 2005 e Melhor Documentário, Direção e Trilha Sonora Original em outros festivais. O filme foi veiculado pelo Canal Futura e pelo SESC TV. O filme foi um dos 16 selecionados pela Mostra Brasil Plural 9, o maior festival itinerante de cinema brasileiro pela Europa, que percorreu países como a Alemanha, Áustria e Suíça, entre os anos de 2006 e 2007. Já dirigiu e roteirizou mais de 15 documentários desde 1989.
Sem Comentários