O MUSEU AFRO BRASIL no Ibirapuera montou uma grande exposição de arte contemporânea africana, a Africa Africans. Vieram representantes de vários países da Costa Oeste, e a sofisticação estética e crítica ficaram evidentes. Se pensamos que a escravidão só extinta (oficialmente) há pouco mais de um século depois de tantas violências sofridas por tantos séculos, as heranças que criaram essa nova relação continental, incorpora múltiplas referências e leituras.
Suas representações não funcionam como ‘africanos’ como um lugar único, indistinto, mas com referências circunscritas geograficamente, isto é, com as riquezas e especificidades de Gana, de Benin, da Nigéria, etc, ainda que sabedores que seus Estados-países foram implantados como num tabuleiro, por interesses europeus. Mas a geografia dialoga com a história, onde tribos ancestrais tiveram de negociar ou guerrear com domínios também indistintos – europeus. O que trouxeram foram heranças divididas entre a devastação e suas raízes tribais milenares.
Todos os traços de heranças culturais, no entanto, atravessam suportes ocidentais, num diálogo inter-Atlântico, ora aviltando materiais europeus com cinismo e revolta, ora demonstrando uma exuberância estética de envergadura impactante.
Com curadoria do refinado Emanuel Araújo, a intenção era mostrar a chaga feita arte pelos povos seviciados, rebaixados, renegados? Vieram os criadores da costa oeste, de onde eram embarcados as “mercadorias” caçadas para a travessia do Atlântico. Mas não vieram rebaixados, e sim soberbos com os olhos abertos. Como disse Napoleão Bonaparte: Posso perdoar, mas nunca esquecerei.
Pelo espaço do museu domínio, beleza e ironia, fazem da montagem uma vivência de impacto.
De Benin, Dominique Zinkpe montou um ambiente escurecido, ladeado por areias recobertas por sandálias de praia identificadas por nomes (de seus donos?). O caminho leva à uma tela imensa onde imagens de crucificados se revezam, ora homem, ora mulher, de uma etnia, de outra, e outra…. enquanto no caminho que leva aos crucificados inúmeros ídolos pendurados se projetam em sombras sobre o ícone cristão, onde os estranhamentos se sobrepõe. Convivendo em uma mesma espécie de gruta profana, indícios de religiosidades conflitantes se mostram pop, estetizados, igualmente absurdos, igualmente presentes e sobrepostos.
Da Nigéria Bright Eke fez uma instalação de execução simples e grande impacto visual. Saquinhos de plástico cheios de água, fechadinhos em bico e outros cheios de água com pó de carvão. Pendurados sobre um morro de areia que não se tocam, o que se vê é água límpida e sujeira, mas também beleza. Quase se tocando o limpo e o sujo, a fragilidade de gotas de água sobre areia natural, primitiva. Mas o todo desse contraponto obriga nosso olhar a brindar os mundos que, lado a lado, sem se tocar mostram o belo no efêmero, como um candelabro sobre a duna de um deserto.
A exposição como um todo, demonstra que a obras não tiveram seus talentos sequestrados pela mágoa, ainda que uma lucidez aguda aponte para um sorriso cínico. Com El Anatsui, da Nigéria – o grande astro dessa mostra, sua obra impacta com um manto do luxo e do abandono.
Na linda tapeçaria de grande presença e nobreza trazida por El Anatsui a trama é construída sobre o descarte do “Ocidente” como os pedaços de latas e papelões de que é feita. De perto as pequenas peças são costuradas de maneira virtuosística, impondo um manto nobiliárquico que vai de parece a parede, mas nega a hierarquia entre o nobre e o escravo, o mais alto ao mais baixo, num jogo de cena fantasioso. O rico e o pobre. Mas acima de tudo é lúcido, por expor uma leitura em grande estilo, em toda sua beleza e contradição.
A exposição neste museu usa essa oportunidade para trabalhar com crianças que, em conversas pelos corredores, ouvimos suporem que os africanos vivam nus pelo continente, sem distinções de países ou línguas, numa grave desinformação que atravessa o Atlântico atingindo nossas ricas e presentes heranças africanas. O trabalho de embotamento que nossa formação escolar perpetua, não é apenas empobrecedora, mas criminosa por ser intencional, e o jogo de desmascaramento se faz urgente e justificável. A África, sem protagonismo no mundo do poder, vive reflexos de uma memória ofensiva e desrespeitosas sobre a dor de seu martírio escravagista que se arrastou por séculos.
Gérard Quenum do Benin, é contundente, e brinca com o horror da memória, num grande painel onde se espera ver expostos troféus de caça, mas Gerard mostra uma perturbadora sequencia de instalações feitas por bonequinhas, capacetes de guerra e…. pouco humor. A sequencia é monstruosa e eloquente.
Muito mais para se ver, sentir e pensar, esta exposição é imperativa por sua grandeza, força, domínio e presença artística, para lá do diálogo político. A exposição Africa Africans estará no Museu Afro Brasil até o dia 30 de agosto de 2015.
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