O termo Beat é de origem controversa. Jack Kerouac defendia que o termo fosse uma abreviação de beatitude. Allen Ginsberg nominava seus devassos e esquisitos amigos de farras e poesias, como beatificados – “mendigos santos sofredores e fodidos”. Outras fontes alegam que essa denominação estava relacionada à influência do jazz por sua batida, ritmo e improviso, mas também como parte de um novo arsenal de gírias da época, associado a um fenômeno da mídia devido ao primeiro satélite lançado ao espaço, o russo Sputnik. Por causa dos comportamentos nada ortodoxos desse grupo um crítico do jornal San Franciso Chronicle , em 2 de abril de 1958, chamou-os de forma depreciativa, por “Beatniks”, fundindo o nome do satélite (símbolo de novidade e velocidade) às suas aparências desleixadas, suas ousadia em ouvirem música negra e por espalharem uma literatura direta e espontânea, que ignorava as regras da academia.
O Movimento Beat irá absorver o “fluir” do Surrealismo onde o inconsciente se torna matéria de criação de arte num emaranhado de escapes com fortes doses de uma anarquia intuitiva, em total negação às hierarquias sociais e posturas irreverentes nunca vistas antes por grupos jovens. A aparência caótica de seus comportamentos imporá um debate entre as famílias tradicionais estadunidenses, cujos problemas de rebeldia ligados a uma determinada faixa etária da sociedade organizada do Ocidente são identificados. Começa a surgir a “juventude transviada”.
Os beatniks buscarão essa índole anárquica de criar e produzir, propondo a extinção da censura sobre vivências e sensações, isto é, sem as noções maniqueístas de bem e mal, de santo e pecaminoso da sociedade naquele tempo. A liberalidade sobre a subjetividade surge num momento em que o peso da existência de uma sociedade massificada e moralista, aparece como subproduto da industrialização que começa a se impor no cotidiano social do pós-guerra. Freud, figura que vinha se tornando mais e mais conhecida desde o Surrealismo no final dos anos 1920, torna-se imperiosa com o existencialismo de Sartre, jogando lenha na fogueira dos experimentos vivenciais. Contra a máxima sartreana de que “o inferno é o Outro” os Beats escolhem as estradas como via para seus próprios Paraísos longe das cidades superpovoadas da Costa Leste. O Movimento Beat torna-se nômade, festeiro, drogado e imerso na poesia transgressiva de uma geração que se opõe à sociedade puritana subserviente às leis do mercado e ao deslumbramento das tecnologias que escravizam e massificam.
Com a Geração Beat as condições repressivas da sociedade do pós-guerra, começam a ser pulverizadas pela força da indústria cinematográfica com filmes de extrema violência existencial como o Vidas Amargas (East of Eden, de 1955), que foi um escândalo, visto como uma delação dos silêncios impostos por uma estrutura familiar e social repressora, acovardada e violenta. A este filme, seguiu-se Juventude Transviada (Rebel without a Cause, do mesmo ano de 1955) que levantou mais polêmica, mas sempre abafada pela própria indústria do cinema, jogando com o glamur do ator James Dean (jovem e lindo) na tentativa de relativizar impactos sobre conceitos morais de uma sociedade que, até então, esforçava-se para se manter casta e vigorosa como padrão social. Mas a cortina do moralismo já estava rota.
A polêmica evidenciava questões perigosas em um momento delicado da Guerra Fria, quando o macarthismo, em plena cruzada contra o comunismo, perseguia adversários e críticos dessa sociedade, que via sua herança puritana, cristã e castradora, tornar-se monstruosa ao invés de virtuosa como sempre acreditou ser, através do american way of life que, neste momento, é posto em cheque.
Além do cinema, o movimento Beat impactaria a cultura ocidental pela qualidade literária, principalmente de três de seus mais famosos representantes: Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, entre outros. Esse movimento, em si mesmo, já era um emaranhado de influências, com ingredientes explosivos que incluíam a rejeição ao modus vivendi da classe média estadunidense e seus objetivos de consumo, a imposição de uma higiene pessoal e aparência apolíneas, duplicadas nas relações interpessoais formais, hierarquizadas e competitivas, e várias outras.
Essa busca de aventuras por deslocamentos geográficos e inquietações nos subterrâneos da consciência e do corpo, percorriam caminhos freudianamente perigosos, repletos de porões e sótãos de si mesmos. Nessas viagens, além de seus carrões baratos pela explosão da indústria automobilística dos anos ’50 e ‘60, também mergulhavam em outras vertigens levados pelo álcool, as drogas, a música inebriante e a ‘escrita automática’ aprendida do Surrealismo, produzindo golfadas de imagens instantâneas com passagens ao desconhecido íntimo, talvez até, seus próprios monstros.
Uma das marcas mais impressionantes das experiências desse grupo foi denominada por Kerouac de “prosódia bop”, significando uma linguagem rápida, com versos longos, misturas espontâneas, saltos de ideias livres como os compassos do free jazz não domesticado, impaciente e marginal. Nessa mesma ‘vibe’ alguns nomes do jazz do período ficarão associados aos road-poets como Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Thellonious Monk, mas também o experimentalismo nas artes plásticas, que buscava se perder sem domínio, como a pintura gestual de Jackson Pollock jogando o corpo, o suor, as raivas e erotismos em golpes de pincéis em febre, produzindo todos juntos e fragmentados os “anais” da Beat Generation. Estudioso dessa perturbação artística do pós-guerra Claudio Willer comenta as ousadias que marcaram as artes e as letras, concordando com Ginsberg na imagem da ‘iogas da palavras’ onde o fruir dos sons, imagens e ritmos das palavras, prescindiam da velha e mofada coesão de sentidos. Entender? Não com a razão.
Apesar da fama de vagabundos, afinal fizeram-se nômades grande parte de suas vidas, tinham em sua maioria, formação universitária ligada às letras, e todos eles, ou quase todos, viveram de vender seus textos às editoras e jornais, mesmo quando em trânsito pelas estradas do país, via correios. Pode não ser tão romântico conhecer essa realidade dos Beats, mas poupou seus integrantes da pobreza absoluta, garantindo o nomadismo. De qualquer modo, fosse pelo marketing da indústria cinematográfica, por um inconsciente coletivo que já se indispunha aos padrões rígidos das sociedades cristãs do Ocidente, ou pela alta qualidade da produção literária da maioria de seus integrantes, suas ideias escaparam do país, espalhando-se por outros Continentes.
Herdeiros desse movimento no Brasil, grandes poetas vivos ou idos são Claudio Willer, Roberto Piva, Rodrigo de Haro, Antonio Fernando de Franceschi, Roberto Biccelli e outros. Roberto Piva, em especial, mergulhado num surrealismo revisitado pela iconoclastia beat, atravessa a louca São Paulo já dos anos sessenta aos noventa (século XX) numa loucura de experiências fragmentadas por um moralismo que não consegue seqüestrar seus pecados e des-andanças.
BICHO-PREGUIÇA
Flores calvas
calmas
colunas de fumaça
dançando
na Lua nua
seus beijos dançam
em minha boca vermelha
estrelas azuis folhas calcinadas
o parque é um sonho vegetal & seus olhos zumbem
vocês atravessam a ponte do delírio
Bem-te-vi bebendo o orvalho
na palmeira
correrias de crianças criando o caos
colorido
o parque espreguiça
onde você estiver esta tarde de janeiro 77
gostaria de receber seu coração por Via Aérea
com todas as pérolas do amor com mãos dadas
percorrendo as ruas à procura do Rumo
andaimes partidos na alma amassada na
mesma hora hora
tudo feito sob medida de um terremoto …
(Coxas (1979)
“Ginsberg tinha razão ao falar em ‘ioga da palavra’ referindo-se a essa fruição das palavras como ritmo e sonoridade, desligadas de seu sentido imediato” citando Claudio Willer e seus estudos.
Também Burroughs experimentava, com suas colagens de palavras, cujo procedimento consta de recortar e dobrar, ou seja: cut up e fold in, usurpadas do Dadaísmo. Burroughs escreveu o Almoço nu, entre outras obras, com essa técnica. Em um poema Allen Ginsberg comenta assombrado, essa maneira surrealista de Burroughs criar.
ON BURROUGHS’ WORK
The method must be purest meat
And no symbolic dressing,
Actual visions and actual prisons
As seen then and now
Prisons and visions presented
With rare descriptions
Corresponding exactly to those
Of Alcatraz and Rose
A naked lunch is natural to us,
We eat reality sandwiches.
But allegories are so much lettuce
Don’t hide the madness
(San Jose, 1954)
SOBRE A OBRA DE BURROUGHS
O método deve ser a mais pura carne
e nada de molho simbólico,
verdadeiras visões & verdadeiras prisões
assim como vistas vez por outra
Prisões e visões mostradas
com raros relatos crus
correspondendo exatamente àqueles
de Alcatraz e Rose
Um lanche nu nos é natural,
comemos sanduíches de realidade
Porém alegorias não passam de alface.
Não escondam a loucura.
Esse fluxo da palavra tem mesmo a intenção de deixar surgir como num improviso de jazz, um jorro rítmico, acelerado, às vezes construído em frente aos olhos como um ente mítico, chamado POEMA.
SUGESTÃO DE LEITURAS:
– Jack Kerouac – On the Road (Pé na estrada)
– Allen Ginsberg – Howl (Uivo)
– Williams Burroughs – Naked Lunch (Almoço nu)
– Roberto Piva – Paranóia
– Claudio Willer – Geração Beat
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