Estamos na Belle Époque. Temos febre de ilusões e reformas em ebulição. A indústria impõe novos hábitos sobre as pessoas que pela primeira vez na história, sentem a velocidade como um personagem no cotidiano das cidades, invadindo espíritos aturdidos e assombrados. Quanto impacto! Quanta beleza ao alcance das mãos, quanta novidade se espalhando por Paris!
Com o fim da guerra franco-prussiana em 1871, o alívio toma conta dos espíritos que tratam de viver na busca de mais convívio social, desenvolvendo vestimentas elaboradas, idiossincrasias e exotismos dos comportamentos urbanos, transformando transeuntes em notórios desconhecidos. O consumo explode e o desejo pelo prazer torna-se uma mercadoria. É quando locais de entretenimento ficam ao alcance da burguesia, não mais apenas da velha aristocracia francesa.
Paris havia passado por uma enorme e traumática transformação urbanística por vinte anos de caos e transtornos na primeira metade do século XIX, quando suas características feudais foram destruídas para dar lugar aos modernos boulevards e largas avenidas onde o movimento alucinado do tráfico das carruagens (sic!), comércio, transeuntes e os cafés ocuparam as ruas, em busca de novidades e novos pecados. O outro lado dessa excitação das grandes metrópoles nós já conhecemos: solidão, pressa e ansiedade.
Toulouse-Lautrec (1864) veio ao mundo mergulhado nesse mundo de perfumes, luxos e a imposição da eficiência pelo Capital industrial corrente. Nascido rico e aristocrático, o Conde Henri-Marie-Raymonde de Toulouse-Lautrec-Monfa estava fadado às noites de farras, óperas, corridas de cavalos, encontros em lindos cafés construídos com as volutas caprichosas do Art Nouveau, mas eis que, aos quatorze anos sofre um acidente com um cavalo e quebra o fêmur. Há quem diga que, acometido de grave e rara doença, a quebra do fêmur foi consequência esperada, uma vez que mesmo com o tratamento, seus fêmures nunca mais cresceram, produzindo um corpo deformado que o jogou do lado dos “olhados com condescendência”. Mas ele não esperou para recolher migalhas da piedade alheia e partiu para o bas-fond de Paris, encontrando o mundo que o acolheria com respeito, admiração e alguma alegria.
Com os privilégios da família e seu fantástico talento Lautrec experimentou muitas linguagens e passou a produzir cartazes para as Operetas, os Bailes e outros espetáculos noturnos, misturando técnicas onde a leveza, a vibração e os movimentos, capturavam a irreverência das indumentárias e o luxo falso dos cenários, como se vê em “Marcelle Lender” e “Confetti” acima. Carvão, pastel, óleo, cartão, tela … nada permaneceu intocável e os momentos dos aplausos, da glória, mas também de seus opostos foram capturados. A publicidade, os retratos, os depoimentos pessoais, foram ganhando contornos das intimidades onde tinha acesso e pertença.
Nos Cabarés que frequentava, assistia aos ensaios e treinamento das dançarinas, cantoras e todo um exército que montava e garantia os espetáculos, incluindo os rufiões e cafetinas, as orquestras às toneladas de rendas e cintas-ligas. Nas Maison Close (as casas onde se encerravam as profissionais do sexo), todo um mundo errático e ilusório, perdido entre o abandono e a diversão eclodia em meio aos jogos de sedução, as regras das cafetinas, os gemidos de prazer, a exploração e o medo.
Neste mundo onde as regras são de ferro o cotidiano gira entre a solidão e a dominação, os quereres são adversos e sem espaço para os afetos. Toulouse Lautrec entendia isso: as vidas entre a tragédia e as delícias do glamour, o sub-mundo era seu mundo, o show-business seu ganha-pão com os cartazes, e as prostitutas suas musas e amigas. No quadro “As duas amigas” o olhar solidário retrata os afagos e gestos de proteção que encontrava com frequência entre as moças que viviam na própria casa onde à noite, se vendiam. Com a prostituição legalizada desde Napoleão em 1804, os bordeis abrigavam moças sem paradeiro na sociedade do século XIX. Lautrec é parceiro com seus pincéis que espelham o que se esconde entre o entretenimento e a opressão, o desejo e a discriminação.
Lautrec, o aristocrata com olhos amorosos retrata suas amigas, seus pesadelos e eventuais afetos homossexuais como “As duas namoradas” e o retrato de “Rolande” (que poderia ser também mais um dos shows da casa para entretenimento dos frequentadores). Com uma predileção pelas ruivas, constantes em sua obra, dava movimento e dinamismo às cenas de intimidade com linhas diagonais cruzando as telas, capturando a força dos gestos. Lautrec retrata o fugaz e o entediante dos cotidianos dessas mulheres que se apoiam entre si, atravessando formas de vida nem tão festivas.
Mas Lautrec não as ama apenas por serem solitárias e exploradas, mas também aquelas que se fazem fortes e potentes, encarando o pintor e a todos nós, com firmeza e destemor. Esse é o caso da “Mulher com echarpe negro” onde vemos uma profissional da noite com olhar altivo, rosto pintado, realçado por pó de arroz (indigno nas mulheres ‘direitas’), retratada em um traje de palco forte como ela.
Vários homens também são retratados por Lautrec e identificados por seus nomes, com biografias reconhecidas na sociedade da época e estão sempre elegantemente trajados. Supõe-se que esta seria característica de uma velada misoginia, isto é, que os homens com aparências respeitáveis possuiriam seu respeito ao contrário das prostitutas e todo o séquito de trabalhadores que circulavam ao redor delas para a construção dos espetáculos, permanecendo em sua maioria, no anonimato. Minha discordância se dá exatamente na elegância associada aos homens retratados em sua obra, em contraste com a variedade de mulheres que estampou como musas decaídas, figurando às vezes lindas, às vezes ferozes, às vezes carentes, outras vezes exuberantes em seus números de cantos e danças, mas sempre buscando a humanidade que conversa conosco desde aqueles tempos já tão distantes.
Lautrec, comentarista de seu tempo, amava as mulheres, em especial as da marginália, demonstrando proximidade de seus sentimentos, alegrias e desejos, ao contrário da frieza com que retratou honoráveis aristocratas que circundaram nosso apócrifo conde. Morre de alcoolismo aos 37 anos, em 1901.
Confiram essa grande mostra e confrontem meu ponto de vista enquanto temos o privilégio de ter a reunião de tantos trabalhos do grande-pequeno Toulouse-Lautrec no Masp, até o dia primeiro de outubro de 2017.
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